Sapatilhas e fanta laranja, por Roberto Kaz
Numa quinta-feira recente, fazia frio em Londres. Chovia e
ventava – o que, para corpos mais frágeis, impedia qualquer investida à rua sem
o auxílio prévio de um pão quente e de uma xícara de café.
Com seus 43 quilos, a bailarina Roberta Marquez preferiu sair
de barriga vazia. Vestiu collant, calça e casaco. Com o cabelo preso, tomou o
metrô rumo à Royal Opera House, sede do balé onde trabalha. Às 10h, minutos
antes da aula matinal, tomou café e beliscou um croissant. Mais não comeu.
“Senão fico cheia”, justificou.
Roberta é primeira-bailarina do Royal Ballet – cargo de
maior importância na mais prestigiosa companhia britânica de dança clássica.
Entre os principais grupos de balé do mundo, apenas outros dois
brasileiros ocupam posição similar. Roberta é a única do sexo feminino, em que
a concorrência é fortíssima. “Os meninos, na infância, ganham bola de futebol.
As meninas, sapatilhas. O universo da dança tem muito mais bailarina que
bailarino”, explica.
Bailarinos, à diferença de funcionários, trabalham nos fins
de semana. Logo, pela heterodoxia de horários, tendem a se casar com membros da
mesma espécie. Roberta divide um apartamento com o cubano Arionel Vargas,
também primeiro-bailarino, mas do English National Ballet, companhia inglesa de
menor distinção. Os dois acordam regularmente às 9h para, uma hora depois,
estarem a postos para os ensaios matinais – cada qual em um teatro.
Naquela quinta-feira, ela achou um assento vazio no metrô.
Aproveitou o trajeto para ver, no iPod, um vídeo da coreografia que estava
ensaiando – para a “Sinfonia em Dó Maior”, do compositor francês Georges Bizet.
Já no teatro, trocou os sapatos por sapatilhas, vestiu polainas (para aquecer
os tornozelos) e se juntou a 25 outros bailarinos para a aula masculina (homens
e mulheres fazem aulas separadas, mas, por ocupar um cargo de destaque, Roberta
tem direito a escolha).
Sob o comando quase militar da professora cubana Loipa
Araujo, que supervisionava a execução dos passos (“Um, dois, ‘demi-plié’. Um,
dois, ‘echappé’”), Roberta se alongou, flexionou, saltou, deu piruetas. Em
seguida, já devidamente aquecida – e suada –, vestiu o figurino para o primeiro
ensaio. A sala foi tomada por dezenas de bailarinos, um pianista, uma leitora
de benesh (a partitura para balé) e pela diretora Patrícia Neary. Pelo resto do
dia, ela ainda teria um segundo ensaio e um intervalo para a prova de roupas.
“Não tem como comparar minha vida aqui com a do Brasil. Tudo muda, até os
detalhes do figurino”, ela disse. “Hoje, não preciso me preocupar com nada, só
com a dança. No Brasil, eu tinha que comprar sapatilha, me preocupar com o meu salário,
porque, às vezes, faltava.”
Primeira-dama
Roberta Marquez nasceu há 33 anos no Rio de Janeiro. Entrou
na Escola Estadual de Dança do Teatro Municipal aos oito anos, após ser levada
pela mãe para assistir ao balé “O Lago dos Cisnes”. Aos 16, já fazia parte do
corpo de baile e, aos 24, era primeira-bailarina do grupo. O novo cargo, em vez
de alegrá-la, gerou frustração: “No Brasil, com sorte, você consegue fazer três
balés por ano. Quando virei primeira-bailarina, eu me vi pensando: ‘É isso? E
agora? Eu quero dançar.’”.
Em 2003, devido à contusão de uma dançarina do Royal Ballet,
Roberta integrou provisoriamente a companhia britânica. O convite foi
intermediado pela diretora russa Natália Makarova, que, meses antes, a
conhecera no Teatro Municipal do Rio. “Eles precisavam de alguém para fazer a
Bela Adormecida”, Roberta lembrou. “Treinei como louca durante três meses.
Estava muito nervosa.” Um ano depois, seria contratada em definitivo, já como
primeira-bailarina: “Não imaginei que chegaria aqui dessa maneira. Se não fosse
tão rápido, teria tentado com minhas próprias pernas, mas provavelmente
começaria em outra posição”, disse.
Ela diz jamais ter pensado em outro tipo de dança que não a
clássica: “Não quis ser do Grupo Corpo. No balé clássico, você sempre conta uma
história. No contemporâneo, não. Aqui, um dia eu sou um cisne, no outro, Bela
Adormecida, no outro, Julieta”. Tampouco sonhava com as companhias russas de
dança: “Pensava no Royal Ballet, na Ópera de Paris e no American Ballet
Theatre. Na Rússia, eles têm uma obsessão pela execução perfeita. Você acaba
virando uma ginasta.”.
A bailarina diz ter mudado o estilo desde que chegou ao
grupo britânico. “Quando era mais jovem, eu me preocupava demais com a técnica.
Mas ela sozinha não basta. Consigo ver quando alguém está dançando com o corpo,
mas sem a cabeça. É o conjunto que faz diferença.” Hoje, ao fazer um balé como
Romeu e Julieta, diz “pensar em tudo o que se passa na cabeça dela quando vê
Romeu morto”: “Aqui, na Inglaterra, eles dão mais valor à atuação. Às vezes, eu
me sinto uma atriz sem falas.”.
O cotidiano, no entanto, faz que se lembre de que não é uma
atriz sem falas: bailarinos, qual jogadores de futebol, contundem-se. Em
janeiro, Roberta estirou a panturrilha. “Foi o primeiro machucado sério que
tive em Londres.” Após pausa de quatro dias, voltou ao batente: “A vida no balé
não é fácil. Você sacrifica tudo”, diz. Por tudo, entenda-se gravidez (“Não
posso abrir mão da carreira.”) e prazeres da mesa (“Muito raramente bebo um
vinho. Se tenho que me apresentar de branco, fecho a boca.”).
Às 16h, Roberta interrompeu a entrevista para a prova de
figurino. Antes de se despedir, indagou se o repórter já havia almoçado. Ao
ouvir a mesma pergunta em resposta, indicou com os olhos a lata de refrigerante
que segurava, uma Fanta Laranja. Era o seu repasto.
Revista Serafina, Folha de S.Paulo, 26 set. 2010.
E recentemente, quando Roberta esteve no Rio para a Gala no Theatro Municipal ela deu uma entrevista para CARAS, vale a pena conferir: aqui. Bisous.
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